Há momentos em que eu acredito viver na época certa da história, no lugar certo do globo. Há singelos momentos de compreensão mútua em que percebo no olhar de amigos, no toque de familiares e nos votos de estranhos – perfis desconhecidos na internet – doses convenientes de suporte, apoio e motivação. Nesses momentos tenho a certeza de viver uma revolução, ser uma pequena parte dos milhares indivíduos diretamente inseridos no contexto histórico que marca o fim de uma era de preconceito e ignorância. Estes momentos me fazem acreditar que ser um homossexual nas primeiras décadas do século XXI é um presente. Em todos os outros momentos eu sinto exatamente o oposto.
Nestes outros momentos sou surpreendido geralmente sozinho, no banco do 2004, indo para o meu estágio, em busca de oportunidades no mercado de trabalho para garantir meu futuro profissional e continuar pagando as minhas contas, fazer algumas reservas, retirar minha habilitação, comprar um carrinho a longas prestações... Lembro-me da feira que tenho que fazer para cozinhar a janta, do texto que tenho que ler para o próximo seminário na faculdade, da barba que pede para ser cortada ou de uma piada engraçada contada por um amigo. Estou ocupadíssimo com coisas absolutamente normais em minha inquieta mente adolescente quando um comentário maldoso feito “pela tia do banco de trás” me tira da zona de conforto e me traz para o que eu chamo de zona clichê. A “tia do banco de trás” pode ter dito um milhão de coisas que despertam minhas anteninhas de vinil e me colocam de volta nesse incômodo estado.
“Não intindi essa da Daniela Mercury agora, deve tá querenu chama atenção. Só pode, uma moça tão bunita... Uma vergonha, um absurdo!”
“Isso é falta de coro! Ah se fosse meu fio.”
“Pela ordi! As pessoa num aceita a palavra di deus e se intrega aos pecado da carne. Mas tá amarrado e o que é deles tá guardado!”
“Aí eu falei... Vira homi menino!”
Ínfimas menções aos homossexuais e à homossexualidade com o menor resquício de desaprovação, repúdio ou ódio são suficientes para me deixar, por mais uns dez minutos, na zona clichê. Chamo de “zona clichê” pois é por culpa dela que a minha pauta gira sempre em torno desse mesmo assunto. O que eu posto nas redes sociais, o que eu falo nas rodas de conversa, os filmes que vejo, as músicas que escuto, os livros que leio, os textos que escrevo (não diga?) e tudo o mais que faço está dentro desse campo semântico. Só não dá preguiça porque o assunto é sério. Uma vez desperto do mundo comum em que ser gay é apenas mais uma característica em meio a tantas outras, e não o centro de convergência dos assuntos, eu sou jogado dentro dessa “zona clichê” na qual passo por vários estágios: repúdio, incompreensão, pena, revolta e o pior deles: dor.
Sim, dor. Sou crescidinho -“Um homão!” - como diz minha avó todas as vezes que me encontra depois de semanas sem me ver, mas sou humano (apesar de muitas pessoas, muitas mesmo, não me tratarem assim) e a desaprovação alheia, por mais que pareça desimportante e desnecessária, quando vem assim em ondas, o dia todo, a semana toda, o ano todo, todos os anos em toda a sua vida, dói. E ainda bem que dói! Isso só comprova o fato de que todas as pessoas que transformam oxigênio em gás carbônico nesse planetinha azul são absolutamente iguais a mim em um importantíssimo quesito: eu também tenho sentimentos. No final das contas esse bafafá todo é só a fobia alheia de ver pessoas iguais a elas, expressando sentimentos iguais aos delas, com a mesma dignidade e beleza que elas, de um jeito diferente. Parece até inveja! Vai saber... talvez Freud explique.
A dor vem com intensidades diferentes cada vez que entro na “zona clichê”. Por vezes imperceptível, passa tão rápido que me concentro no repúdio e na pena (
haters gonna hate), mas em algumas ocasiões ela é mais intensa. Como quando eu e alguns amigos participamos de uma manifestação contra a homofobia na faculdade e uma foto nossa parou em uma matéria no portal de notícias G1.
A matéria era bacana, a foto também. Mas os comentários... Os comentários doeram bastante. Xingaram minha mãe, meu pai, meu papagaio, minha avó, meu cachorro, queimaram minha alma, me ameaçaram fisicamente, me agrediram verbalmente, desejaram a minha morte várias vezes e de várias (criativas) formas distintas. Não uma ou duas pessoas, a maioria esmagadora dos leitores que comentaram na página; e eram centenas. Eles achavam que eu deveria realmente fazer um bem à sociedade e me esconder em um poço bem fundo (
samara feelings) ou comprar minha passagem para a terra dos pés juntos.
O primeiro comentário lido gerou pena, o segundo repúdio, o terceiro incompreensão e, na medida em que eu ia descendo a barra de rolagem, formava-se em minha mente a imagem de um grupo de camponeses com tochas e garfos nas mãos marchando em minha direção (Calma, eu sei que jamais fariam isso... Quem usaria tochas e garfos em pleno século XXI? Ai que coisa idade média, bee!). Essa sensação de que a absoluta maioria te odeia, te repudia e te abomina; esse coro ensaiado que te chama de aberração, monstruosidade e o caralho a quatro é algo que te afeta, cara. Você sabe que eles estão errados, ninguém precisa evocar
“We are Golden!” do Mika como incentivo moral para levantar sua astral. O problema não está em você, o problema está neles; mas dói do mesmo jeito. Porque eu não vivo sozinho no mundo, eu divido esse planetinha azul com essas pessoas. Elas votam nas mesmas eleições que eu, elas pegam o mesmo ônibus que eu, elas concorrem às mesmas vagas, elas comentam os mesmos vídeos que eu no youtube. E se você sabe o que é o youtube você também sabe que ler os comentários feitos por essas pessoas dói. Dói a alma, dói o coração, doem as vistas, dói o fígado, dói até o apêndice que seu médico removeu anos atrás.
Eu que sou crescidinho, tenho opinião formada e um ego de proporções incomensuráveis passo logo por esse estágio da dor. Mas tem gente menos casca grossa, gente mais sensível, gente mais humana que, seja por ter sentimentos mais intensos ou devido a diferentes conjunturas ser afetado mais facilmente por essa horda de ignorantes, passa uma grande parte da vida em estado depressivo, buscando aprovação de forma errada e, por vezes,
desistindo de viver e se atirando de uma torre de rádio.
Eu queria que doesse menos nessas pessoas, queria que doesse menos em mim também. Eu queria que os momentos em que eu acredito viver uma “revolução histórica” fossem mais frequentes. Eu espero pela época em que eu possa falar de coisas levianas e escrever besteiras na internet. É por acreditar que essa época vai chegar que eu bato na mesma tecla e fico dentro da zona clichê clamando por igualdade e respeito, igualdade e respeito, igualdade e respeitozzzzzzzz... Prometo que quando ser gay não for mais um tema tão polêmico, quando for a coisa natural que é, e eu conseguir ficar horas e dias fora da zona clichê, irei falar de assuntos muito mais interessantes e vocês vão descobrir que, além de gay, eu sou um cara muito legal.
