quinta-feira, 11 de agosto de 2016

O dia em que tomei (de verdade) meu primeiro sorvete de morango

Pra ficar mais gostosinho leia esse texto ouvindo Efêmera, da Tulipa Ruiz.
Sabe quando alguém te chama para tomar uma cervejinha e você fala que não pode, que o tempo está corrido, que “anda garrado”, que tem um compromisso... mas que vocês PRECISAM MARCAR um dia desses? Mas não é daquelas vezes que você não gosta muito do convite, ou está sem paciência ou vontade e dá uma desculpa meio frouxa para declinar. Não. Eu estou falando daquelas vezes que você REALMENTE quer sair, mas o trabalho, a faculdade, o namoro, a família, a casa, a academia, a aula de inglês, a autoescola, o cachorro doente no veterinário... enfim, a correria da vida te impede de viver esse momentinho de efemeridade.

Esse sentimento você conhece, de estar sempre correndo. E exausto. Foi a Eliane Brum quem escreveu um maravilhoso texto para o ELPAÍS sobre essa condição não humana que padroniza a forma de (sobre)viver dos dias de hoje. Um trecho dele circulou bastante no facebook:

Estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos e correndo. E a má notícia é que continuaremos exaustos e correndo, porque exaustos-e-correndo virou a condição humana dessa época. E já percebemos que essa condição humana um corpo humano não aguenta. O corpo então virou um atrapalho, um apêndice incômodo, um não-dá-conta que adoece, fica ansioso, deprime, entra em pânico. E assim dopamos esse corpo falho que se contorce ao ser submetido a uma velocidade não humana. Viramos exaustos-e-correndo-e-dopados. Porque só dopados para continuar exaustos-e-correndo.

Uma sensação comum a todos nós. Todos. Mas eu estou escrevendo esse texto para falar exatamente sobre a sensação oposta. Como ela é bem mais rara, mais incomum, decidi começar falando do oposto, gera mais identificação e te deixa um pouquinho mais preso desse lado daí, lendo. Pois bem. Nas últimas duas semanas eu estive... livre. Não estive exausto, nem correndo, nem dopado. É bem mesmo essa a palavra: livre. Sem trabalho, sem faculdade, sem compromisso importante agendado. Nada que me impedisse de pegar meus doze pares de AllStar que não viam água e sabão há anos, lavar eles a mão no tanque às nove da manhã enquanto cozinho um feijão na cozinha, colocar os tênis para secar “quarando” no sol de meio dia enquanto escuto o novo álbum da Supercombo, em plena terça-feira.

Esses últimos dias me permitiram fazer um monte de coisas que eu queria ter feito há muito tempo e que “a vida” não deixava. Mas depois que todas essas coisas estavam feitas, depois do checklist zerado, eu comecei a experimentar os dias de forma diferente. Me veio uma sede de coisas, uma vontade de ver gente, uma vontade de saltar pela janela e virar cidade lá fora. Foi tomando um sorvete de tarde na pracinha que eu senti essa sensação gostosa e estranha (estranha justamente por ser assim tão diferente do que estamos acostumados) que vou descrever.

Eu estava em casa estudando para o mestrado, parei para comer e me veio um desejo louco de tomar sorvete. Coloquei uma “brusinha” e fui na pracinha da rua de baixo da minha casa comprar um sorvete em uma sorveteria/açaí (hoje em dia toda sorveteria virou açaí e todo açaí serve sorvete, inclusive amo, parabéns aos envolvidos) que eu nunca tinha ido antes. Eu estava pensando em comprar um pote de sorvete e voltar para casa para comer, enquanto estudava. Mas quando cheguei na pracinha o barulho das crianças no horário de recreio na escolinha ao lado, a sombra das arvores na calçada e o clima gostoso da tarde me disseram que seria uma excelente ideia sentar ali e tomar aquele sorvete.

Nesse momento mágico, eu senti uma sensação tão gostosa, tão maluca, tão insana, de ficar ali, tomando sorvete, que comprei duas bolas de morango, meu preferido, pedi para servir no cascão, tirei uma pazinha de madeira da caixinha de acrílico no balcão e sentei no banquinho de cimento. Única e exclusivamente para tomar meu sorvete.

Eu nunca tomei um sorvete tão gostoso na minha vida. Enrolei cada minuto, peguei porções minúsculas de cada vez. Devo ter ficado uns quarenta minutos sentado ali tomando sorvete. Eu não estava enrolando porque tinha uma atividade chata para fazer depois e queria postergar aquele momento. Não estava aproveitando um momento só comigo mesmo nas férias para relaxar, não estava fazendo uma pausa na vida corrida para tomar um sorvete, porque não tenho mais uma vida corrida para pausar. Não. Eu só estava me delongando e apreciando aquele sorvete de morango ao máximo simplesmente porque eu podia, e queria. Sem férias, sem fim de semana, sem pretexto. Afinal de contas: era sorvete, não era calmante para o stress do trabalho nem antidepressivo como forma preventiva das enxaquecas rotineiras de ficar o dia inteiro com a cara enfiada no computador.

O sorvete estava tão gostoso que eu comecei a me perguntar se eu, alguma vez, já tinha dedicado a atenção merecida aos sabores e texturas de um sorvete de casquinha. Se o morango é meu sabor favorito, sempre pedi ele, e até agora não tinha me dado conta do quanto ele é saboroso, aquele freezer cheio de opções dentro da sorveteria era um mundo gigantesco de oportunidades desperdiçadas porque eu sempre estive correndo demais para dar atenção aos pequenos prazeres das coisas.

Foi nessa hora que eu percebi que há muito, mas muito tempo mesmo, eu não apreciava as efemeridades gostosas da vida. Saía na sexta-feira para tomar uma cervejinha com os amigos “para relaxar”, porque eu “estava precisando”. Ia para cachoeira no fim de semana para “esvaziar a cabeça”. Fazia temporada de Netflix para “me desligar um pouco”. Dormia até tarde no domingo “porque eu merecia”. Não é que eu não estava me divertindo, relaxando ou aproveitando esses momentos. Mas o motivo pelo qual me dedicava a eles, o que dizia aos outros e a mim mesmo, faziam toda a diferença na hora de viver esses momentos. Tomar uma cervejinha para esfriar a cabeça é muito diferente de fazer exatamente a mesma coisa porque você quer, e pode.

É claro que essa vida boa não vai durar muito mais tempo. O mestrado está aí, em breve volto a trabalhar e os dias vão sim, voltar a ser corridos. Eu só espero me lembrar dessa sensação gostosa e não me esquecer do ensinamento primoroso que tirei de duas bolas de sorvete de morango: a vida passa, e se a gente encarar todos nossos momentos gostosos de descanso e diversão como remédio para o stress e folga para a correria, talvez morramos sem nunca experimentar, de verdade, mais que um ou dois sabores de sorvete.
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quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Aberta a temporada de caça aos Homens de Verdade



Atacaram eles impiedosamente nas redes socias, derrubaram a página do orgulho de ser hetero, colocaram eles na friendzone, fizeram todo tipo de atrocidade.

No mundo em que vivemos, ser um homem de verdade é motivo para sofrer ataques. Se ele não aprova o casamento gay, é homofóbico. Se é contra o aborto, não respeita o corpo da mulher. Se faz uma cantada está cometendo abuso, se a mina faz “cu doce” e ele insiste? Abuso também. Se tem orgulho de ser hetero, é um babaca. Se quer uma mulher que se dê ao respeito, é machista... até os homens de verdade que são gays sem deixar de serem machos não são poupados do ataque.

A verdade é que os homens de verdade estão sendo caçados. E se eu fosse um deles procuraria abrigo. E rápido.

Porque dentro de algum tempo (e eu espero que esse tempo seja curto) ser homem de verdade será insustentável. Ninguém mais se sujeitará aos caprichos criminosos dos homens de verdade. Nenhuma mulher sofrerá calada os abusos dos homens de verdade. As gays não idolatrarão mais a virilidade do homem de verdade. As personagens femininas, negras, lésbicas, bichas, bissexuais, travestis e transexuais (as personagens de verdade) irão tomar o lugar antes dedicado exclusivamente aos homens de verdade. No cinema, na TV, no teatro... e essas mesmas personagens de verdade daqui um tempo também assumirão a maioria dos papeis no mundo de verdade, papeis antes exclusivos dos homens de verdade. No senado, na câmara, nos cargos privados, nas universidades...

Por isso, HOMEM DE VERDADE, se você está se sentindo atacado, saiba que isso não é delírio da sua mente pequenininha, não. Porque tudo o que sempre alegaram ser característica de um HOMEM DE VERDADE sempre esteve ligado, de uma forma ou outra, à opressão e ao privilégio. E se me atacar, eu vou atacar.

Como você (que surfou a vida inteira na crista da onda das regalias que o mundo em que vivemos te oferece de mão beijada) não está acostumado com a pressão, eu sugiro procurar um psicólogo, começar uma terapia desde já. Porque esse mundinho maravilhoso que só existe dentro da sua cabeça, onde você tem tudo e pode tudo, está começando a mudar. E se você já está assim, todo abalado, todo dolorido, chorando lágrimas de macho por aí, fica a dica: engole o choro e aprende a mudar, porque essa temporada de caça está só começando.
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segunda-feira, 20 de julho de 2015

Uma questão de Orgulho


Eu nunca havia participado da parada do orgulho LGBT, mas esse ano decidi que iria até mesmo sozinho se preciso fosse. Sorte a minha encontrei outra ovelha negra perdida do rebanho atrás de companhia pra participar do evento, a linda da Sofia Coeli, responsável pela maioria das fotos deste post.

Alguns de vocês podem dizer:

Mas Marcos, com esse montão de amigos gays, lésbicas, bis e trans que você tem, ainda estava achando que teria de ir sozinho para a parada? Bixa, menas.

Pois é. Estranho né? Quando o casamento igualitário foi aprovado em todo o território dos EUA a maioria esmagadora dos meus amigos participou da campanha “Celebrate Pride” e colocou o filtro colorido na foto de perfil, foi lindo. Fiquei emocionado por uns dias com essa onda de amor, aceitação e orgulho da diversidade. Mas de forma irônica, na medida em que o dia da 18ª Parada do Orgulho LGBT de BH ia chegando, eu fui percebendo a falta de repercussão que esse evento tinha no meu ciclo de convívio e amizades. E gente, meu ciclo de convivência é coloridíssimo, viu? Nem mesmo um comentário do tipo: “A parada é esse final de semana, você viu? ” Ou quem sabe um convite para ir junto. Nada mesmo, uma reticência completa sobre o assunto.


Fiquei pensando no evento que funcionou como gatilho para o movimento do orgulho LGBT em 1969 e percebi que, diferente do momento da rebelião de Stonewall em NY, a principal forma de opressão que sofremos hoje em dia não vem do conflito direto e físico com a polícia, por exemplo. (Apesar desse tipo de violência ainda existir, com mais frequência do que imaginamos. Veja o caso da morte da Laura Vermont, que tem como principais suspeitos dois policiais: http://goo.gl/2vouw3 ). A opressão e as ameaças que sofremos hoje são mais sutis. Sinto que a pauta do movimento LGBT, como um todo, passou pela exigência de aceitação e agora batalha pelo respeito. Saímos do armário, não temos mais que nos esconder. Essa é uma vitória incrível, e devemos a todos e todas que lutaram no passado para que pudéssemos ter essa liberdade hoje, para que fôssemos aceitos.

Mas a aceitação que conquistamos está longe, MUITO LONGE, de respeito. E respeito é algo que, definitivamente, nós não temos. Não somos respeitados em praticamente nenhuma das esferas sociais, e é essa a nossa luta hoje. Talvez por isso meu facebook tenha ficado multicolorido durante a campanha Celebrate Pride, mas foi tão difícil cruzar com rostos amigos na multidão de 30 mil pessoas que lotou a praça da estação no domingo à tarde.




A Rebelião de Stonewall deu origem à um movimento de ORGULHO. E muitas pessoas não entendem muito bem o que esse termo significa. Afinal de contas, orgulho pode ser aplicado tanto como um sentimento de capacidade e satisfação pessoal como também um sentimento de arrogância ou soberba. Picuinhas do nosso idioma multifacetado. Mas o que ninguém se lembra é que o antônimo desse termo é claro, simples e não tem dupla interpretação: VERGONHA.

“ Vergonha é uma condição psicológica e uma forma de controle religioso, político, judicial e social, consistindo de ideias, estados emocionais, estados fisiológicos e um conjunto de comportamentos, induzidos pelo conhecimento ou consciência de desonra, desgraça ou condenação. “
 Wikipédia

Vergonha é uma coisa pesada, né? Consciência de desonra, desgraça e condenação. Se você, leitor, é heterossexual, talvez não entenda muito bem o peso que essas palavras carregam. Mas se você, assim como eu, se enquadra dentro da sigla LGBT ou dentro de algum dos seus aspectos de alguma forma, você sabe exatamente do que eu estou falando.



Desonra, desgraça e condenação são conceitos que assombram todos LGBT’s antes e depois de sair do armário. E é preciso muita coragem e força para aos poucos deixar essa vergonha de lado e aprender a ter orgulho de si mesmo. É por essas e por outras que abominações como a página “Orgulho de ser hétero” não fazem o menor sentido.

E é justamente porque é preciso vencer toda essa vergonha imposta, que nós, LGBT’s, precisamos exercitar o nosso orgulho diariamente. E se existe algo que ajuda e muito nesse sentimento é a noção de comunidade. Ver nossos amiguinhos colorindo a foto de perfil é delicioso. Acalenta até os corações mais frios. Mas ver toda essa gente unida, em um mesmo lugar, com um mesmo propósito, é mil vezes mais emocionante.



Nesse movimento que clama por respeito, ousar existir, botar a cara no sol e exigir muito mais que aceitação é a mais militante de todas atitudes. Participar da parada tem um significado muito maior do que se pensa. Participar da parada é reconhecer todos os direitos que já foram conquistados com muita luta e sofrimento mas perceber que ainda falta MUITO, mas MUITO MESMO, para que a sonhada igualdade seja alcançada. Malafaias, Bolsonaros, Felicianos, Cunhas e outras aberrações políticas estão aí para provar isso.

E é justamente por isso que participar da parada é sim, um ato político. E não é preciso nem levar cartaz com palavras de ordem (mas pode sim!), basta encontrar lá dentro de você aquilo que te define como quem você é de verdade, colocar esse seu eu para fora e desfilar ele, cheio de orgulho, sambando na cara de uma sociedade que há algumas décadas percebeu que você existe, mas ainda teima em torcer o nariz quando passa.


Fotos por Sofia Coeli.

...
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sexta-feira, 26 de junho de 2015

LEGALIZARAM O CASAMENTO!


A suprema corte dos estados unidos votou hoje, 5 contra 4, pela legalização do casamento. O casamento, finalmente, deixou de ser um privilégio em todo o território dos Estados Unidos da América e se tornou o que ele sempre deveria ser: um direito de todos.

Não é o casamento gay que foi aprovado, nada disso. Não existe coisa tal como casamento gay. Casamento é casamento. Uma coisa que existe há milhares e milhares de anos. O casamento é uma instituição, um vínculo estabelecido entre duas pessoas e reconhecido pelo governo e sociedade. O casamento precede a religião, e justamente por isso não vou nem falar sobre ela aqui.

Quando duas pessoas se amam, querem dividir a vida juntas, querem ser reconhecidas socialmente por essa união e vínculo de amor, elas se casam. Simples assim, isso é casamento. 

O casamento é um direito que garante também vários outros direitos como declaração de impostos conjunta, estabelecimento de vinculo parental de primeiro grau e outras coisitas mais.

Mas o mais importante. CASAMENTO QUASE SEMPRE TEM FESTA. Segue o guia.



Quando um homem e uma mulher se unem para toda a vida e solicitam o reconhecimento do governo e sociedade perante esse vínculo, eles se casam. BAM! CASAMENTO!



Quando um homem e outro homem se unem para toda a vida e solicitam o reconhecimento do governo e sociedade perante esse vínculo, eles se casam. UAU! CASAMENTO!



Quando uma mulher e outra mulher se unem para toda a vida e solicitam o reconhecimento do governo e sociedade perante esse vínculo, elas se casam. INCRÍVEL! CASAMENTO!

Perceberam a diferença? Não? Pois é. Não tem diferença.

O amor finalmente venceu o ódio e o casamento saiu da lista de coisas proibidas lá na terrinha americana. Virou coisa legal.
Que legal! 

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segunda-feira, 8 de junho de 2015

Eu acho é pouco.

A cruz é um instrumento de tortura milenar. Uma representação máxima da dor, sofrimento, flagelo e suplício. A cruz também é um símbolo de ódio, ignorância e crueldade. Um símbolo da frieza desumana dos que crucificam e da humilhação taxativa do crucificado.

A cruz é também e principalmente o símbolo mundial do cristianismo. Uma vertente religiosa cuja doutrina foca o ato de amor de um deus que, para redimir os pecados de seu povo, submeteu seu filho ao sacrifício máximo da morte e à humilhação pela cruz. Esse filho viveu pregando a compaixão, o amor e o respeito. Criou dez mandamentos para a sua vindoura igreja e para simplificar as coisas resumiu todos eles em dois:

  1.  Amar a deus sobre todas as coisas.
  2. Amar ao próximo como a si mesmo.
Amar ao deus que, POR AMOR, dá a vida de seu próprio filho pelo pecado dos outros e amar a estes outros como se ama a si mesmo... Para mim, na minha humilde interpretação, algo que diz que o  AMOR é o principal ensinamento de todos e deve vir acima de tudo. Ou deveria ser.

No domingo passado a atriz Viviany Beleboni fez uma performance artística durante a parada do orgulho LGBT em São Paulo. A performance consistia de uma representação da crucificação de Jesus. As letras INRI (Iēsus Nazarēnus, Rēx Iūdaeōrum – Jesus Narazeno Rei dos Judeus) supostamente presentes na placa da crucificação original de Jesus foram substituídas pelo apelo “BASTA DE HOMOFOBIA COM GLBTs”. Uma metáfora clara para o suplício que essas pessoas sofrem na sociedade em que vivemos. Pela constante humilhação, dor e sofrimento que podem resultar em assassinatos, como o da amiga da atriz baleada com quatro tiros na cidade de Porto Alegre em um crime de transfobia.

Qualquer que seja o cristão que olhe para a imagem dessa mulher trans emulando a crucificação de Jesus Cristo, coberta de sangue da cabeça aos pés, com um clamor de BASTA sobre a cabeça e não consiga ver neste protesto um pedido gritante de SOCORRO não deveria ser digno de se considerar cristão verdadeiro.

Justamente aqueles de deveriam amar ao deus, que perdoa a tudo e a todos, sobre todas as coisas e ao próximo como amam a si mesmos são os primeiros a levantar os dedos em riste, atirar pedras, condenar ao fogo do inferno, ameaçar de morte, agredir e humilhar.

Para estas pessoas o que incomoda aqui não é o uso do seu símbolo religioso e a apropriação deste. O jogador de futebol Neymar pode virar mártir crucificado na capa da revista Placar sem iniciar nenhum levante popular. Não. O que incomoda aqui é que Viviany é uma mulher trans, um ser estranho, diferente, uma “aberração” para esse povo cheio de ódio que esqueceu que a ÚNICA missão conferida por seu deus era amar. Um povo cheio de ignorância que não consegue perceber que com sua agressão cotidiana incentiva e justifica formas de agressão piores que culminam em assassinatos. Mortes horrendas que se assemelham de verdade à morte pela cruz. Mortes irreversíveis: eu nunca ouvi falar de uma travesti que ressuscitou ao terceiro dia para voltar aos braços de sua mãe, família e amigos.

Essa gente cheia de ódio precisa acordar para perceber que respeito, tolerância, compaixão e amor são a chave para um mundo melhor; e que o discurso que elas pregam é de desrespeito, aversão, ignorância e ódio. ÓDIO. E para vencer esse ódio é preciso SIM tocar no ponto mais dolorido da questão. Essa gente precisa rever o sacrifício de seu deus na pele de uma mulher trans SIM, mais e mais vezes. Até que um dia, quem sabe, consiga enxergar no pedido de socorro de uma atriz coberta de sangue falso o sofrimento rotineiro das milhares de travestis e mulheres trans que, quando tem sorte, não sangram de verdade.
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terça-feira, 2 de junho de 2015

Eles não desejam mal a quase ninguém.


Amigas gays, sapatas, total flex, assexuadas e representantes amadas de todos os espectros possíveis da fluida e linda sexualidade humana, venho com esse texto perfumado pelas sete fragrâncias da Egeo, do boticário, lembrar uma coisa importante: somos, sempre fomos e sempre seremos minoria.

Falei o óbvio? Talvez. Mas as vezes é bom repetir pra que não nos esqueçamos. O comercial da Boticário para o dia dos namorados é lindo, fofo, meigo e representativo. E isso é ótimo! Batamos palmas pela coragem dos representantes da marca de se posicionar de forma firme, acertaram em cheio. Viva! Tomara que isso incentive outras marcas a se posicionarem de forma semelhante. Mas resolvi escrever esse textinho para falar de outro ponto. Ou outros pontos:

A Rejeição do comercial e o boicote da marca não são um absurdo tão grande assim, muito menos uma surpresa.

Nosso país ainda é aquele que tem o maior registro de crimes homofóbicos NO MUNDO TODO. Seguido por México e Estados Unidos.  Sete em cada dez homossexuais já sofreram alguma forma de agressão (e fizeram denúncia, porque se formos contar todas as formas de agressão não denunciadas sabemos que esse número pula pra 10/10 né?). A representatividade de homossexuais na televisão é ridícula e pouco expressiva. O casamento civil é uma conquista extremamente recente e sofrida. Enfim, o cenário é ruim. A coisa está feia, e a gente se esquece disso. E nos esquecemos por quê?

A circulação de informação pela internet nos coloca dentro de uma bolha de conforto.

Para além do fato de que nos cercamos de pessoas que nos fazem bem, e por isso a maioria dos nossos amigos são gays, ou pessoas que nos aceitam e fazem o máximo pra se livrar de seus preconceitos, os novos meios de acesso à informação tendem a nos deixar monotemáticos. O algoritmo do feed do facebook faz com que só vejamos publicações de pessoas que compartilham dos nossos interesses. Ou seja: por mais que você tenha vários amigos babacas na sua lista repudiando um comercial como esse e sendo escrotos em níveis astrológicos é muito improvável que o chorôrô da família tradicional vá aparecer na sua timeline. Isso te dá a ilusão de que todo mundo é legal, mente aberta e nada preconceituoso. Mas cuidadinho, amiguinho. O mundo não é tão cor de rosa quanto a sua timeline.

Precisamos voltar a fazer barulho, voltar a sermos ativistas.

Somos minoria e sempre seremos. O importante é que sejamos uma minoria respeitada, representada e não negligenciada. Para isso é importante que sejamos vistos, ouvidos e lembrados a cada dia. Não podemos nos acomodar e nos sentirmos confortáveis com a vidinha mais ou menos que conquistamos até então. Vivemos hoje em um mundo bem menos repressivo do que a vinte anos atrás, mas não poder demonstrar afeto em público sem ouvir uma buzina de carro, um assovio impertinente ou qualquer forma de assédio ainda é repugnante e absurdo. E lutar pelo fim disso é, acreditem se quiser, muito mais difícil que lutar pelo direito ao casamento civil ou pela criminalização da homofobia.

Ativismo também é feito no dia a dia, no cotidiano.

Participar de passeatas, abaixo assinados e petições online são formas válidas de luta pra tentar mudar um pouquinho esse mundinho todo errado. Mas a maioria esmagadora das pessoas ainda nos vê como aberrações, como “desviados” ou anormais. Da próxima vez que pegar um ônibus olhe bem para cada pessoinha que está fazendo uso desse transporte com você e tente imaginar qual a opinião dela sobre a sua sexualidade (isso se eles não estiverem demonstrando essa opinião de forma clara com torcidas de nariz e olhares significativos). No nosso dia a dia convivemos com pessoas homofóbicas o tempo todo e engolimos muitos sapos em nome de uma conveniência que eu não sei se leva alguém a lugar algum. Interromper a piada machista do tio do pavê no almoço de domingo e confrontar o ataque que ela representa também é ser ativista. Chamar o coleguinha fanático pelo time de futebol e exigir que ele pare de usar xingamentos homofóbicos e machistas como “maria”, “chupa”, “gaylo” e demais variantes também é ser ativista. Não esconder seu relacionamento ou sua sexualidade dentro do ambiente de trabalho por “conveniência” também é ser ativista. Enfim, não engolir sapos é ser ativista.

Aceitação x Respeito.

Parafraseando a música que dá embalo à propagando da boticário: a gente vive junto mas não se dá bem, porque eles não desejam mal a quase ninguém. E esse quase somos nós.
Lembre-se: você não precisa da “aceitação” de ninguém porque não precisa pedir permissão para ser você mesmo. Não precisa abaixar a cabeça pra quem, de forma direta ou indireta, ajuda a cercear seus direitos. Não queremos aceitação, queremos respeito. E a campanha de boicote contra o comercial da Boticário veio em boa hora para nos lembrar que esse RESPEITO é uma coisa que estamos longe de obter.

E a gente vai à luta e conhece a dor, consideramos justa toda a forma de amor...


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sexta-feira, 29 de maio de 2015

Lavando louça suja.


Gabriela acordou com o som irritante do novo despertador. Segurou o Smartphone com a mão direita, o braço meio dormente formigando em protesto por ficar adormecido debaixo do peso do corpo, e começou a sacodir o telefone.

"_Esse aplicativo novo é ótimo, você vai ver. Não tem como não acordar!”

Maldito o momento em que Gabriela deixou Mariana instalar esse aplicativo infame no seu telefone. Além da preguiça e do mau humor, acrescenta-se agora a dor de braço ao seu despertar: que maravilha. Mas hoje ela não poderia, nem se conseguisse sacolejar o iPhone por tanto tempo, colocar a famosa soneca de cinco minutos (que se estende pela eternidade matinal) e voltar a dormir com o sabor especial que o sono de culpa tem nessas manhãs de quarta-feira. Não, hoje não. Hoje ela tinha de levantar e “dar um tapa na casa” antes de ir pra faculdade. Hoje Mariana vinha pra almoçar, pela primeira vez, em sua casa. E por mais que a vida desleixada de universitária permitisse à Gabriela acumular todas as suas tarefas domésticas por semanas, meses a fio, eram nesses momentos que Gabriela dava razão à implicância de sua mãe e sua mania de limpeza. O seu ninho de bagunça, sujeira, roupa embolada no chão do banheiro e manchas de cactchup na porta da geladeira iria receber a visita de um ser estranho a toda aquela baderna. Impossível deixar a casa um brinco, mas Gabriela tinha, pelo menos, de lavar a louça da cozinha.

“Lavar a louça” não descreve muito bem, na verdade, a missão a ela incumbida. As tarefas de Hércules pareceriam puzzle de revistinha infantil comparadas à gigantesca cordilheira de copos, montanha de pratos, enxurrada de talheres, serras de panelas e montes de tupperwares acumuladas dentro da pia (e algumas sobre o armário, não havia mais espaço debaixo da torneira.)

Gabriela arrastou as pantufas para o banheiro, escovou os dentes com a mão esquerda (o braço direito ainda dolorido de sacudir o iPhone) e fitou os olhos vermelhos de sono (culpa do netflix) no espelho. Depois se dirigiu à cozinha e encarou, meio atordoada, meio admirada, a labuta que a esperava. Reparou em especial em uma xícara de chá, isolada no cantinho direito do balcão. A matriarca, ou melhor, a primogênita dos seus irmãos talheres e pratos sujos.

Um mês e meio atrás, depois de lavar a cozinha e passar um pano na casa, Gabriela começou a dieta do chá verde. Saindo atrasada, e com fome, depois de um café da manhã magro que incluía meia maçã e uma xícara de chá, ela repousou essa mesma xícara de forma peculiar, naquele cantinho especial, e fez a nota mental: quando chegar eu lavo, antes de dormir.

Pausa para os risos do leitor.

No momento fatídico em que Gabriela encarou essa mesma xícara, semanas depois, no cantinho da bancada da pia, ela se questionou seriamente: “Será que parte de mim sabia que eu jamais iria lavar essa xícara naquele dia?” A resposta pairou no ar silencioso da manhã, quase sólida, batendo na cabeça oca de Gabriela.

Para afastar o peso aterrador dessa certeza, Gabriela arregaçou as mangas e se pôs a organizar a louça. Prato sobre prato, louça menor dentro da louça maior, economizando espaço. Se perguntou se Mariana faria o mesmo para lavar a louça. Provavelmente. Mariana era organizada, responsável, metódica e higiênica. Mas sem ser chata. Nada em Mariana era chato. Será que com a chegada iminente da mudança de Mariana pro seu apartamento Gabriela iria absorver os bons hábitos da parceira ou contaminar ela com sua preguiça infecciosa?

“Olha, um pote de Nutela mal rapado! Quase duas colheres inteiras do mais divino chocolate com avelã perdidas ali dentro! Que absurdo!” Jogou o pote em um cesto de lixo ainda mais abarrotado que a pia. Ele quicou em uma caixa de leite e caiu quase sem fazer ruídos sobre uma embalagem de miojo.

Será que os hábitos alimentares das duas não seriam um problema no casamento? Mariana era vegana, Gabriela não ficava uma semana sem um belo bife mal passado. Provavelmente não. Mariana era muito compreensiva e paciente com os outros. Nunca insistira para que ela também cortasse o sofrimento animal de seu cardápio. E Gabriela estava adorando experimentar as receitas veganas que vinha descobrindo na internet para cozinhar pra namorada. “Eu bem que poderia viver sem carne se hambúrguer não fosse tão bom... Tadinhos dos animais, né?” Parou logo de pensar muito sobre o assunto porque a fazia se sentir culpada.

A louça agora já organizada até permitia que Gabriela movesse um pouco os braços sob a torneira. Timidamente começou pelos talheres. Uma faca com fio cego, que Gabriela tinha prometido a si mesma levar para amolar meses atrás, foi mais uma alfinetada na sua falta de compromisso. “A Mariana jamais enrolaria tanto pra fazer algo tão simples.” O chaveiro que amola facas e alicates fica literalmente do lado da casa de Gabriela. Lavou, secou e guardou a faca na bolsa. “Quando sairmos passo lá e amolo”.

Olhou o relógio e percebeu que nunca conseguiria terminar a cozinha, tirar a bagunça visível do caminho e receber Mariana em um ambiente minimante agradável. Ia ser um desastre. Na primeira vez que ela entraria em sua casa, teria essa impressão desleixada... Quais poderiam ser as consequências, a curto e a longo prazo pro relacionamento? Jogou um moletom pra detrás da estante e bateu o cinzeiro no mini jardim da janela. Voltou correndo pra cozinha pra terminar a pia e já estava começando a acreditar que conseguiria deixar pelo menos essa parte limpa quando a campainha tocou.

"E agora? É o fim. Toda a minha irresponsabilidade, falta de compromisso, higiene e organização vão ficar evidente e ela não vai nem querer sair da sala de estar. Eu estou com a cara amarrotada, com o cabelo todo embolado, encharcada de água suja, as unhas um horror, atrasada pro almoço..." Uma olhada rápida no relógio enquanto pegava o chaveiro no prego da parede com a mão esquerda, com a direita segurando a esponja cheia de espuma. “Ei, na verdade não. Não são nem 11h ainda, o que aconteceu?”

Espiando pelo olho mágico Gabriela viu Mariana na porta de entrada. Linda, como sempre. Abriu a porta e já ia começar a formular um discurso desajeitado de desculpas quando Mariana adentrou como um furacão, falando afobada.

_Desculpa chegar mais cedo sem avisar! Mas é que meu celular está sem bateria, meu carregador quebrou semana passada e eu ainda não comprei outro porque estava usando o do Diego, mas ele viajou ontem e me deixou na mão! O seu iPhone é o 5 também né? E você pode me emprestar uma roupa? As minhas estão todas sujas porque há semanas que eu não coloco pra lavar! Eu presumi que tudo bem se eu tomasse banho aqui... Meu chuveiro também não está lá essas coisas, acho que uma parte da resistência queimou. Aí a gente sai um pouquinho mais cedo e passa no shopping do lado da facu pra eu comprar um novo. Carregador... Não chuveiro. O chuveiro ainda aguenta uns dias. Eu acho... Pode ser?

Mariana parou a fala de forma abrupta depois de jogar a mochila sobre o sofá. Reparou na ponta da faca que saia de dentro da bolsa de Gabriela e olhou direto nos olhos da namorada. Os olhos de Mariana... Aqueles olhos castanhos escuros emoldurados pela madeixa de cachos negros, cheios de vida. Gabriela olhava dentro desses olhos de forma atônita. Não conseguiu pensar em uma resposta condizente com tudo que sentia e disse automaticamente:

_Mas eu ainda não comecei...

E levantou as mãos molhadas com a esponja pingando espuma no chão da sala. Fazendo o melhor pedido de desculpas que conseguia com o rosto.

_Ah, então a gente come lá no shopping mesmo antes da aula. Passa no McDonalds, sei que você queria cozinhar pra mim, mas o Triple Cheese tá na promoção de 5 reais, vi ontem! Eu arranjo alguma coisa pra comer no...

Onde Mariana iria descolar um almoço vegano na praça de alimentação ficou por ser dito. Gabriela jogou a esponja no chão e pulou no pescoço da namorada para um beijo apaixonado.

_Que isso, amor? Tá ficando louca é? E por falar em loucura... Porque você está carregando uma faca de açougueiro na sua bolsa?

Gabriela deu uma gargalhada gostosa e com os braços cruzados sobre os ombros de Mariana respondeu.

_Ela está sem corte. Não importa.

Nada disso importava: um maravilhoso futuro com pias cheias de louça suja havia acabado de se descortinar a sua frente.
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