sexta-feira, 29 de maio de 2015

Lavando louça suja.


Gabriela acordou com o som irritante do novo despertador. Segurou o Smartphone com a mão direita, o braço meio dormente formigando em protesto por ficar adormecido debaixo do peso do corpo, e começou a sacodir o telefone.

"_Esse aplicativo novo é ótimo, você vai ver. Não tem como não acordar!”

Maldito o momento em que Gabriela deixou Mariana instalar esse aplicativo infame no seu telefone. Além da preguiça e do mau humor, acrescenta-se agora a dor de braço ao seu despertar: que maravilha. Mas hoje ela não poderia, nem se conseguisse sacolejar o iPhone por tanto tempo, colocar a famosa soneca de cinco minutos (que se estende pela eternidade matinal) e voltar a dormir com o sabor especial que o sono de culpa tem nessas manhãs de quarta-feira. Não, hoje não. Hoje ela tinha de levantar e “dar um tapa na casa” antes de ir pra faculdade. Hoje Mariana vinha pra almoçar, pela primeira vez, em sua casa. E por mais que a vida desleixada de universitária permitisse à Gabriela acumular todas as suas tarefas domésticas por semanas, meses a fio, eram nesses momentos que Gabriela dava razão à implicância de sua mãe e sua mania de limpeza. O seu ninho de bagunça, sujeira, roupa embolada no chão do banheiro e manchas de cactchup na porta da geladeira iria receber a visita de um ser estranho a toda aquela baderna. Impossível deixar a casa um brinco, mas Gabriela tinha, pelo menos, de lavar a louça da cozinha.

“Lavar a louça” não descreve muito bem, na verdade, a missão a ela incumbida. As tarefas de Hércules pareceriam puzzle de revistinha infantil comparadas à gigantesca cordilheira de copos, montanha de pratos, enxurrada de talheres, serras de panelas e montes de tupperwares acumuladas dentro da pia (e algumas sobre o armário, não havia mais espaço debaixo da torneira.)

Gabriela arrastou as pantufas para o banheiro, escovou os dentes com a mão esquerda (o braço direito ainda dolorido de sacudir o iPhone) e fitou os olhos vermelhos de sono (culpa do netflix) no espelho. Depois se dirigiu à cozinha e encarou, meio atordoada, meio admirada, a labuta que a esperava. Reparou em especial em uma xícara de chá, isolada no cantinho direito do balcão. A matriarca, ou melhor, a primogênita dos seus irmãos talheres e pratos sujos.

Um mês e meio atrás, depois de lavar a cozinha e passar um pano na casa, Gabriela começou a dieta do chá verde. Saindo atrasada, e com fome, depois de um café da manhã magro que incluía meia maçã e uma xícara de chá, ela repousou essa mesma xícara de forma peculiar, naquele cantinho especial, e fez a nota mental: quando chegar eu lavo, antes de dormir.

Pausa para os risos do leitor.

No momento fatídico em que Gabriela encarou essa mesma xícara, semanas depois, no cantinho da bancada da pia, ela se questionou seriamente: “Será que parte de mim sabia que eu jamais iria lavar essa xícara naquele dia?” A resposta pairou no ar silencioso da manhã, quase sólida, batendo na cabeça oca de Gabriela.

Para afastar o peso aterrador dessa certeza, Gabriela arregaçou as mangas e se pôs a organizar a louça. Prato sobre prato, louça menor dentro da louça maior, economizando espaço. Se perguntou se Mariana faria o mesmo para lavar a louça. Provavelmente. Mariana era organizada, responsável, metódica e higiênica. Mas sem ser chata. Nada em Mariana era chato. Será que com a chegada iminente da mudança de Mariana pro seu apartamento Gabriela iria absorver os bons hábitos da parceira ou contaminar ela com sua preguiça infecciosa?

“Olha, um pote de Nutela mal rapado! Quase duas colheres inteiras do mais divino chocolate com avelã perdidas ali dentro! Que absurdo!” Jogou o pote em um cesto de lixo ainda mais abarrotado que a pia. Ele quicou em uma caixa de leite e caiu quase sem fazer ruídos sobre uma embalagem de miojo.

Será que os hábitos alimentares das duas não seriam um problema no casamento? Mariana era vegana, Gabriela não ficava uma semana sem um belo bife mal passado. Provavelmente não. Mariana era muito compreensiva e paciente com os outros. Nunca insistira para que ela também cortasse o sofrimento animal de seu cardápio. E Gabriela estava adorando experimentar as receitas veganas que vinha descobrindo na internet para cozinhar pra namorada. “Eu bem que poderia viver sem carne se hambúrguer não fosse tão bom... Tadinhos dos animais, né?” Parou logo de pensar muito sobre o assunto porque a fazia se sentir culpada.

A louça agora já organizada até permitia que Gabriela movesse um pouco os braços sob a torneira. Timidamente começou pelos talheres. Uma faca com fio cego, que Gabriela tinha prometido a si mesma levar para amolar meses atrás, foi mais uma alfinetada na sua falta de compromisso. “A Mariana jamais enrolaria tanto pra fazer algo tão simples.” O chaveiro que amola facas e alicates fica literalmente do lado da casa de Gabriela. Lavou, secou e guardou a faca na bolsa. “Quando sairmos passo lá e amolo”.

Olhou o relógio e percebeu que nunca conseguiria terminar a cozinha, tirar a bagunça visível do caminho e receber Mariana em um ambiente minimante agradável. Ia ser um desastre. Na primeira vez que ela entraria em sua casa, teria essa impressão desleixada... Quais poderiam ser as consequências, a curto e a longo prazo pro relacionamento? Jogou um moletom pra detrás da estante e bateu o cinzeiro no mini jardim da janela. Voltou correndo pra cozinha pra terminar a pia e já estava começando a acreditar que conseguiria deixar pelo menos essa parte limpa quando a campainha tocou.

"E agora? É o fim. Toda a minha irresponsabilidade, falta de compromisso, higiene e organização vão ficar evidente e ela não vai nem querer sair da sala de estar. Eu estou com a cara amarrotada, com o cabelo todo embolado, encharcada de água suja, as unhas um horror, atrasada pro almoço..." Uma olhada rápida no relógio enquanto pegava o chaveiro no prego da parede com a mão esquerda, com a direita segurando a esponja cheia de espuma. “Ei, na verdade não. Não são nem 11h ainda, o que aconteceu?”

Espiando pelo olho mágico Gabriela viu Mariana na porta de entrada. Linda, como sempre. Abriu a porta e já ia começar a formular um discurso desajeitado de desculpas quando Mariana adentrou como um furacão, falando afobada.

_Desculpa chegar mais cedo sem avisar! Mas é que meu celular está sem bateria, meu carregador quebrou semana passada e eu ainda não comprei outro porque estava usando o do Diego, mas ele viajou ontem e me deixou na mão! O seu iPhone é o 5 também né? E você pode me emprestar uma roupa? As minhas estão todas sujas porque há semanas que eu não coloco pra lavar! Eu presumi que tudo bem se eu tomasse banho aqui... Meu chuveiro também não está lá essas coisas, acho que uma parte da resistência queimou. Aí a gente sai um pouquinho mais cedo e passa no shopping do lado da facu pra eu comprar um novo. Carregador... Não chuveiro. O chuveiro ainda aguenta uns dias. Eu acho... Pode ser?

Mariana parou a fala de forma abrupta depois de jogar a mochila sobre o sofá. Reparou na ponta da faca que saia de dentro da bolsa de Gabriela e olhou direto nos olhos da namorada. Os olhos de Mariana... Aqueles olhos castanhos escuros emoldurados pela madeixa de cachos negros, cheios de vida. Gabriela olhava dentro desses olhos de forma atônita. Não conseguiu pensar em uma resposta condizente com tudo que sentia e disse automaticamente:

_Mas eu ainda não comecei...

E levantou as mãos molhadas com a esponja pingando espuma no chão da sala. Fazendo o melhor pedido de desculpas que conseguia com o rosto.

_Ah, então a gente come lá no shopping mesmo antes da aula. Passa no McDonalds, sei que você queria cozinhar pra mim, mas o Triple Cheese tá na promoção de 5 reais, vi ontem! Eu arranjo alguma coisa pra comer no...

Onde Mariana iria descolar um almoço vegano na praça de alimentação ficou por ser dito. Gabriela jogou a esponja no chão e pulou no pescoço da namorada para um beijo apaixonado.

_Que isso, amor? Tá ficando louca é? E por falar em loucura... Porque você está carregando uma faca de açougueiro na sua bolsa?

Gabriela deu uma gargalhada gostosa e com os braços cruzados sobre os ombros de Mariana respondeu.

_Ela está sem corte. Não importa.

Nada disso importava: um maravilhoso futuro com pias cheias de louça suja havia acabado de se descortinar a sua frente.
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